segunda-feira, 3 de maio de 2010

"Uma Expo não é só uma Expo"

O interessante artigo de Francisca Gorjão Henriques sobre a Expo de Xangai (Público, 1 de Maio de 2010):

Algumas fotos do evento podem ser vistas aqui.

"Os números são à escala chinesa e a Expo Xangai 2010 será a maior exposição universal alguma vez realizada. Os seus 5,28 quilómetros quadrados - duas vezes o tamanho do Mónaco ou mil estádios de futebol - deverão receber 70 milhões de visitantes. É também a mais cara: oficialmente gastaram-se quatro mil milhões de dólares (cerca de três mil milhões de euros), mas os media falam em 58 mil milhões (quase 44 mil milhões de euros) para preparar a cidade mais populosa da China para a receber. É a realização de "um sonho com 100 anos", disse o primeiro-ministro. É a China a disparar a arma do seu soft power, dizemos nós.


Depois dos Jogos Olímpicos de 2008, o país oferece a partir de hoje, e nos próximos seis meses, mais uma prova de que estão muito longe os anos de isolamento de Mao Zedong. E isso não acontece num local qualquer. Xangai já foi um porto de entrada do mundo na China; longas décadas depois, o mundo volta a invadir a cidade.

Nada de equívocos: não foi preciso uma Expo Xangai para que de um 60.º andar se olhe em volta e o que haja para ver sejam arranha-céus (há mais de 30 prédios com mais de 200 metros), debruçados sobre o rio ou sobre as vias rápidas que esventram a cidade, turistas e expatriados nos passeios, lojas Louis Vuitton e Gucci e... Xangai era já a cidade mais rica e cosmopolita da China.

Mas há uma mensagem muito clara que Pequim está a passar, e não será apenas para o exterior. Esta é uma forma de demonstrar a sua autoridade e domínio aos próprios chineses, provando que o regime é suficientemente poderoso para receber dois eventos internacionais desta dimensão e num tão curto período de tempo (passaram apenas dois anos desde as Olimpíadas), lê-se numa análise da Reuters. A provar que há uma forte componente interna basta olhar para as previsões: quase 95 por cento dos visitantes virão da própria China.

Por isso há quem lhe chame uma "campanha de distracção maciça" - a expressão partilhada com o diário britânico Guardian é de Anne-Marie Brady, cientista política da Universidade de Canterbury em Christchurch, na Nova Zelândia. "O furor à sua volta serve para ajudar os chineses a sentirem-se optimistas sobre o seu país e pela forma como se está a desenvolver, distraindo-os de outros assuntos mais deprimentes, como desemprego, custo de vida, corrupção e incompetência oficial, acesso a bons cuidados de saúde, subida dos preços do imobiliário", explica Brady. "Na China de hoje, o não político é na verdade profundamente político."

Mais uma vez, o território chinês será pisado por vários chefes de Estado e de Governo, como o Presidente francês, Nicolas Sarkozy (cuja visita à China pretende atenuar as fortes tensões pré-Olímpicos entre os dois países) ou da Rússia, Dimitri Medvedev. Isso faz muitos sentirem-se orgulhosos. "Esperámos 150 anos pela possibilidade de ter uma Expo no nosso país", comenta ao Guardian Wang Xinghua, de 77 anos. "Sinto-me ainda mais contente quando pessoas de outros países nos vêm visitar - representa que a China se ergueu no mundo."

Invenção ocidental

Se recuarmos a meados do século XIX, voltamos a ver uma cidade costeira de importância internacional, quando Xangai se tornou num porto pesqueiro e comercial. Mas este foi também o período da humilhação para os chineses: depois da Guerra do Ópio, as forças britânicas forçaram a abertura e estabeleceram-se ali, em 1842. Franceses, americanos e japoneses juntaram-se às concessões e a cidade ficou tão cosmopolita como Paris. No final do século, o seu território estava parcelado e imune à lei chinesa. Em 1931 havia 70 mil estrangeiros em Xangai; na década seguinte, o dobro.

O Partido Comunista Chinês (PCC) nasceu ali (1921). Mas foi a sua vitória na guerra contra os nacionalistas, em 1949, que levou à "libertação" de Xangai. Ou seja, o PCC pôs um ponto final na presença estrangeira. 

A revista Time lembra no entanto que, apesar da fuga dos expatriados e da transferência em massa da população com formação académica para as províncias menos desenvolvidas, "o cosmopolitismo de Xangai nunca foi totalmente extinto". Ficou com aqueles que não chegaram a sair e que o passavam para as gerações seguintes, desafiando o que se instalou como preconceito de pertencer a uma terra administrada por forasteiros.

"O coração do povo de Xangai está agora a voltar ao que era nos anos 1930 e 1940", diz à revista o romancista Qiu Xiaolong, cujos livros têm a cidade da década de 1990 como palco. "Toda a gente quer regressar àquela glória anterior."

A nova viragem começou nos anos de 1990, com o desenvolvimento da zona de Pudong, na zona leste do rio Huangpu. Algumas razões para a ascensão meteórica da cidade, segundo observadores: instinto de liderança e autoconfiança.

Os espinhos da Expo

Se muitos habitantes estão agora felizes com esta nova demonstração de poder que é a Expo Xangai, também há descontentes. Não são só os raides policiais, que levaram à prisão de mais de seis mil pessoas só em Abril (roubo, prostituição, jogo a dinheiro, venda de conteúdos pornográficos). Não são só as perseguições e violência reportadas pelo Chinese Human Rights Defenders, que diz que seis pessoas foram enviadas para campos de reeducação pelo trabalho - um deles, refere a AFP, é Mao Hengfeng, crítico do Governo, e ficará "afastado" durante 18 meses. Também não é apenas a evacuação de casas para dar terreno à exposição. São todas as restrições, como não soltar papagaios de papel no ar, não sair à rua de pijama (um hábito ainda bastante enraizado), ou não vender facas em supermercados. E, claro, as infindáveis medidas de segurança nos locais públicos, porque as autoridades não pretendem correr riscos. 

"Este é um momento muito importante. Levámos anos a prepará-lo", comenta Hong Hao, vice-presidente da Expo.

A cidade transformou-se, e no caminho gastou ainda mais dinheiro do que Pequim para receber as Olimpíadas. No orçamento contabilizam-se uma série de infra-estruturas - ficou com o serviço de metropolitano mais longo do mundo, dois novos terminais de aeroporto, novas estradas, parques e pontes, para além do novo passeio de 700 milhões de dólares (quase 530 milhões de euros) ao longo do histórico Bund nas margens do Huangpu - e indemnizações que foram necessárias pagar a 18 mil famílias para que deixassem as suas casas. 

Mesmo tendo em conta o ritmo frenético de crescimento urbano no país, aquilo que se passou em Xangai nos últimos oito anos foi descomunal. E sem a Expo as mudanças levariam três vezes mais tempo, estimou ao Guardian Pan Haixiao, especialista em urbanismo da Universidade Tongji. 

"O outro lado é que nos últimos 18 meses provavelmente perdemos mais edifícios antigos do que na última dezena de anos", desabafa à revista Time Paul French, autor e consultor sediado em Xangai.

Cidade melhor, vida melhor

A China será o primeiro país em desenvolvimento a organizar este evento e pretende que esta seja uma plataforma para melhorar as suas relações com o exterior, depois de crises como a censura no Google, a teimosia em não ceder às pressões externas para valorizar o yuan, as frequentes violações aos direitos humanos.

O objectivo é também reavivar o espírito das Expos como grande ponto de encontro internacional e de debate de questões importantes - a deste ano está subordinada ao tema Cidade melhor, vida melhor e pretende abordar tópicos como trânsito, protecção ambiental, energia, lixo e desperdício de água. Tudo problemas que a China conhece bem, porque apesar de a maioria da população ser rural, todos os anos chegam às cidades mais 60 milhões de pessoas; 170 cidades têm mais de um milhão de pessoas e sete mais de dez milhões.

Não será por acaso que dos muitos pavilhões - há um recorde absoluto de participação, com 192 países representados (incluindo os amigos chineses Coreia do Norte, Irão e Birmânia), para além de empresas e organizações - o da China impõe-se sobre todos, com os seus 60 metros de altura.

Há outro objectivo com a Expo Universal: uma rampa de lançamento para fazer de Xangai um novo centro financeiro internacional até 2020, à altura de Nova Iorque e Londres.

O PIB de Xangai multiplicou-se por 65 desde 1990, e a zona de Pundong alberga a bolsa, cerca de 17 mil empresas de capital estrangeiro e 600 instituições chinesas e internacionais, salienta a AFP. Esta será a vingança de uma cidade que foi posta de lado por Deng Xiaoping quando há três décadas arrancou com as reformas económicas do país."

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